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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O primeiro ano do fim das nossas vidas

"O primeiro ano do resto de nossas vidas". Trintões e quarentões devem lembrar desse filme, do final da década de 1980. As angústias do que a gente pensava ser a entrada na vida adulta: saída da faculdade, início da vida profissional, aprender a fazer conta, a fazer o dinheiro chegar ao final do mês. E, no meio disso tudo, os amigos que a gente quer manter, os amores que a gente quer ter, as viagens que a gente planeja, os sonhos que começam a esbarrar na realidade. Assisti esse filme umas mil vezes. E em todas elas me vi, como um personagem ou outro, deslizando entre diferentes angústias. Em algum momento ao longo da vida, me senti adulta e deixei o filme criar poeira na prateleira do escritório e no meu coração. "Já tá tudo resolvido", arrogantemente pensei. Pagamos nossas contas. Machucamos nossos cotovelos. Perdemos o ar no susto de ver a carinha de nossos filhos pela primeira vez. Nós agora somos pais, e não mais filhos. As amizades mais ou menos continuam. Os que são pra ficar, ficaram. Os que sumiram no mundo, sumiram. E tem aqueles que sempre voltam e parece que nunca saíram. Ou os que voltam como o planeta Halley, causando tumulto. Mas tá tudo resolvido. Somos adultos!
Aí vem o ano de 2014 pra mostrar que nada se resolve nunca. Isso sim merecia um filme: "O primeiro ano do fim das nossas vidas". Dramático, né? Mas é bem essa minha sensação. Nunca tantos próximos a mim sofreram tanto. Cruzamos o cabo da Boa Esperança. A pollyanna que sempre morou em mim anda mau humorada. Todo dia espero boas notícias, alegrias gratuitas, gargalhadas cúmplices e tenho encontrado sempre problemas e frustrações, por todo lado. Pais que adoecem, pais que morrem, planos que se desfazem, sonhos que se acabam do nada. Pra todos os lados que eu olho, parece que ninguém tá feliz. Drummond budeja no pé do meu ouvido:

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Os ombros suportam o mundo, mas ele pesa bem mais que a mão de uma criança, caro itabirano. E mesmo ombro a ombro, na nossa marcação cerrada à infelicidade, 2014 tá nos ganhando fácil. Tem como revogar um ano? Medida provisória, projeto de lei, algo que o valha?

sábado, 9 de agosto de 2014

Feliz Rio

Semana passada peguei um voo pro Rio de Janeiro. O primeiro voo depois daquele 7 de abril. Na hora do check in, a pergunta: contato de emergência? A resposta automática não saiu, e um trailer do que seria emergência passou pela minha cabeça: queda do avião, um mal estar durante o voo, invasão extraterrestre, sequestro terrorista... "Não, nenhum contato de emergência".

Desembarquei naquela cidade que eu aprendi a amar lembrando da conversa que tivemos em fevereiro do ano passado. Eu me preparava pra mudança e pro doutorado como um boi indo pro matadouro. Chorava pelos cantos. Me perguntava o que diabo eu tava fazendo da minha vida. Você, como sempre, não emitia opinião ou, pior, quando dizia alguma coisa era sempre pra zombar do meu drama. Um domingo, enquanto lia o jornal no terraço, me disse duas frases que mudaram meu estado de espírito: "Não tem como você não gostar do Rio de Janeiro. O risco é não querer voltar nunca mais". E daí danou a contar do período em que você viveu na cidade maravilhosa. Eu sabia muito pouco dessa época da sua vida, antes de conhecer a mamãe. Foi nesse dia que me contou que tinha morado no Catete, perto de onde eu moraria, que frequentava o restaurante Calabouço, que adorava o filé Osvaldo Aranha do Lamas. Coincidência feliz: um dos primeiros lugares pra o qual me levaram ao chegar no Rio foi ao Lamas. Coincidência ainda mais feliz: eu morava a poucos metros desse restaurante e curei muita saudade com canja e muita fome com o filé que era seu preferido.

Em julho eu tava em Teresina de férias, feliz pelo descanso mas, principalmente, por não estar na cidade chuvosa e entupida de gente com a chegada do papa Francisco. Eu já achava que o Rio era meu e as hordas de turistas me incomodavam. Eu já tinha aprendido a regular meu humor pelo sol e o Cristo encoberto me deixava de TPM. A chuva, que eu gostava tanto, já tinha ganhado outro significado pra mim. Assistimos à chegada do papa pela TV, em Teresina. Mentira. Você e mamãe assistiram a chegada do papa. Eu assisti vocês assistindo e cantando o hino do Vaticano. E assisti também você falar mais um pouco daquelas ruas por onde o papa móvel passava. Nesse dia, tenho certeza, você falou o nome da rua que morou, no Catete. Mas eu não lembro. Quinta-feira subi e desci as ruas do bairro, tentando ler um nome que acendesse uma lâmpada aqui dentro. Nada. Cansada, decidi que era a Bento Lisboa. Caminhei quase até Laranjeiras achando que em algum prédio seu nome iria piscar pra mim. Sentei na praça São Salvador e chorei pela informação perdida, por essa parte sua que eu não sei. Chorei por todos os outros pedaços da sua vida que eu não tenho mais como saber. Chorei por não ter prestado mais atenção, por não ter insistido mais, por não ter perguntado mais, por ter respeitado demais seu jeito silencioso. Fantasiei que você tinha um diário e que eu ia encontrá-lo e ler tudo da sua vida, desde quando você nasceu. Porque, claro, no meu devaneio, você já nasceu sabendo escrever e com um diário debaixo do braço.

Eu nunca fui à sua sepultura depois do seu enterro, papito. E nem sei se vou amanhã, ou se algum dia vou querer ir. Mas eu transformei o Rio na nossa cidade. E nós nunca estivemos juntos lá. Mas você me deu o Rio, primeiro me ensinado a coragem, e depois me dando suas lembranças. Pra mim, você era muito mais que o contato de emergência. Você era um lugar; muito mais que chão: era uma casa, um lar, paredes, teto, ranger de armadores, xícara suja de café esquecida sobre a mesa. Eu não preciso de contato de emergência. Nem preciso da sua sepultura. Muito menos preciso comprar mais um pijama pra ouvir sua gozação: "pijama de novo!!!" Eu tenho o Rio pra voltar. Eu tenho você tão vivo ali pra mim. Mesmo que parte dessa história eu tenha que adivinhar. Obrigada por me dar o Rio, papito. Feliz dia dos pais.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Omedeto tanjobi

Afinidade é um negócio difícil de explicar. Tem gente com quem a gente convive por anos mas que não chega assim tão perto da gente. Tem gente que em cinco minutos vira amiga de infância. Com a Eulália foi assim. Nos conhecemos adultas e viramos amigas de infância. Nossas vidas coincidiram tanto que tem horas que eu conto alguma coisa de um tempo em que ela não estava e ela parece lembrar. Da afinidade pra amizade, nos apoiamos há alguns anos. Coincidimos em profissão, taxa de natalidade acima da média (rs), sonhos, planos, ansiedades... até nossas pesquisas acadêmicas são parecidas. Tão coincidentes nossas vidas que passamos por perrengues com nossos pais ao mesmo tempo. Durante dois dias, meu pai e a mãe dela foram colegas de quarto numa UTI. O meu foi embora, a mãe dela tá aí lutando bravamente. Os muitos quilômetros que separam Teresina e Nagoya não nos impediram de apoiar uma a outra. As mensagens no whatsapp valeram pelos abraços que ela me daria se tivesse aqui.
Já ouvi por aí que não se faz amigos na vida profissional. A competição impediria isso. Ainda bem que nunca acreditei nessa balela. Minha amiga, jornalista como eu, professora como eu, pesquisadora de gênero e redes sociais como eu, me mostra todo dia que é possível ser amigo em meio à busca pela sobrevivência e pelo sucesso. Ao contrário, a gente ajuda uma a outra. Não tem nada que eu já tenha escrito que ela não tenha lido antes. Não tem nenhuma decisão da minha vida profissional que não tenha sido discutida com ela. E há muito espaço no mundo pra nós duas. Ainda bem.
Amigo pra te apoiar na dificuldade é coisa boa. Mas raro, raro mesmo, é amigo que torce por você, que fica feliz pelas tuas conquistas. E com a gente é assim. Se tudo tiver uma merda pra mim, vou ficar feliz de que ao menos pra ela tudo tá indo melhor. E vice-versa.
"A gente não faz amigos, reconhece-os". No território sem lei da internet, já vi essa frase atribuída a Vinícius de Moraes, Caio Fernando Abreu, Luiz Fernando Veríssimo. Sei lá quem disse isso. Mas é a verdade mais óbvia e linda. Amigo a gente reconhece, e fica imaginando porque mesmo aquela pessoa não tava na vida desde sempre.
Pra minha amiga de infância que eu conheci já adulta, desejo todas as coisas melhores da vida, as mesmas que desejo pra mim, as mesmas que quero para nossos filhos. E que volte logo desse doutorado pra gente voltar a comemorar aniversário juntas. Omedeto tanjobi, tomodashi.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Preguiça

Eu ando com muita, muita preguiça. É o peso dos anos, eu sei. Trinta e muitos vividos a mil. Mas não é meu corpo que se ressente desse ritmo, mas minha alma mesmo. Tenho preguiça de tudo. Me incomoda essa história de ter que conhecer pessoas, de falar com pessoas, de me deixar descobrir. As mesmas pessoas estão aqui há anos, e elas me bastam. Eu, que sempre gostei do novo, ando cada vez mais desejosa do que me é familiar.
Tenho preguiça de responder a perguntas, de ouvir respostas, de ver olhares de admiração ou espanto. Como na primeira vez que alguém me vê de óculos, e fica impressionada com o fato de eu ter 7,5 de miopia em cada olho. Ora, mas se você estivesse aqui desde sempre, saberia que uso óculos desde os 12 anos de idade, que a miopia vem da família do meu pai, que eu odeio usar óculos – não por uma questão estética, mas porque não gosto de depender deles ou das lentes de contato e tenho medo do dia em que não encontrá-los.
Se você estivesse por aqui há algum tempo saberia que durmo com os óculos embaixo do travesseiro, às vezes dentro da fronha, porque vai que tem um terremoro e eu tenho que fugir e salvar meus luizes? E saberia também que tenho pavor de acordar e não encontrar os óculos e que aqueles míseros segundos entre o abrir de olhos e o gesto de colocar os óculos no rosto concentram a maior quantidade de tensão e desespero possível. Sim, e a pergunta óbvia que vem agora é: “por que você não faz a cirurgia”, à qual eu teria que responder, já que você não está aqui desde sempre, que eu já tentei, mas por alguma razão a anatomia do meu olho não permite que a tal cirurgia tenha efeito em mim. E, sim, se você estivesse aqui desde sempre saberia também que eu colocava nomes masculinos nos meus óculos, mas todos com Z: tive o Zózimo, o Ziraldo, o Zaratrusta, etc. A mania de nomear os óculos passou, mas continuo nomeando objetos, porque acho que a vida fica mais divertida assim. E eu não teria que te explicar que depois que descobri que Chico Buarque tem essa mesma mania pulei de alegria porque afinal tenho algo em comum com aquele que eu sempre fantasiei ser o homem da minha vida.
E quanto tempo se gasta pra se explicar tanta coisa? Pois é. Muita, muita preguiça. A volta no quarteirão que eu dou antes de chegar no meu destino, caso esteja passando uma música que eu gosto – porque as melhores músicas sempre começam quando a gente tem que parar o carro. Mas isso você só entenderia se estivesse por aqui há um tempo. E eu tenho muita, muita preguiça de me explicar. E principalmente preguiça da previsibilidade das reações que encontro.
Não tem conversa que faça ninguém entender como alguém pode ser tão absolutamente destemida pra tudo mas se trema de pavor ao ver um determinado tipo de flor. E, na verdade, essa é uma pegadinha: não é pra ser entendido. Se você estivesse aqui desde sempre saberia que eu não discuto sobre esse medo, mas espero que meu pavor seja respeitado e não ridicularizado. Tem tantas outras coisas que só quem está aqui desde sempre sabe, porque viveu comigo, porque entendeu sem ter que ser explicado, porque sabe de onde eu vim, e divide a deliciosa dúvida de pra onde mesmo vamos todos nós.
Sim, faz um calor desgraçado, mas eu só durmo de lençol. Porque sem me cobrir me sinto desprotegida, e a hora do sono é sempre a pior do dia pra mim. Eu tenho uma dificuldade enorme pra dormir e também pra me manter dormindo. Eu tenho pesadelos. Ou então sonhos bons, mas intensos demais, que me deixam cansada e triste e ressacada ao acordar. Meus sonhos têm muitas cores e sons, e eu acordo pra uma vida que exige de mim uma postura preto no branco. E até hoje tenho vontade de bater minha cabeça na parede pra parar de pensar. Mas você não entenderia nada disso, porque, pra quem é novo, o outro acabou de nascer. E, ai, já faz tanto tempo que pelejo por aqui que me dá preguiça de explicar de onde vem esses meus gestos e atitudes, que foram construídas por tantas situações, tantas pessoas, tantas gargalhadas.
Sim, eu tenho um sorriso enorme, eu mostro as gengivas, mas também tenho o mau humor mais mau humorado do mundo. Eu sou capaz de azedar leite só de olhar nos dias em que tô virada no cão. Eu fico insuportável e choro porque nem eu me aguento quando sinto dor na alma. E tenho um monte de amigos que me escutam e não acreditam que eu possa ser tão absurdamente boba e dramática assim. Mas eles estão aqui desde sempre e eu nunca preciso explicar os porquês. E esse é o melhor travesseiro pra uma cabeça cheia e uma alma triste.
Eu sempre como o miolo do pão antes. Eu gosto de pizza gelada na manhã da segunda-feira. Eu vivo esquecendo refeições. Eu assisto TV, trabalho, navego e bato papo na internet - tudo ao mesmo tempo agora. E funciono melhor assim. Eu gosto de gatos porque eles são independentes e não se jogam aos pés do dono como cachorros. Eu gosto de cozinhar mas não tenho feito isso muito, não. Eu sinto muito frio, sempre. Mas eu gosto de calor.
Mas você teria que aprender tudo isso, e o exato peso de cada uma dessas pequenas idiossincrasias. E eu tenho muita preguiça de explicar. Seria preciso que você estivesse aqui desde sempre. E seria preciso que eu soubesse me comunicar, o que aliás eu faço muito mal. E você entenderia que essa minha fissura por aprender línguas é reflexo direto da minha vontade de melhor comunicar. Porque eu sei que é preciso buscar em cada palavra o sentido exato, ou buscar, pra cada mínima coisa que se quer dizer, a palavra que lhe traduz, e pra isso é preciso que eu busque em todas as línguas disponíveis, pra que aquilo que eu digo seja não só que eu sinto, mas também seja decodificaco pelo outro como exatamente o que está dentro de mim. Eu quero sintonia. É isso. É por isso que tento aprender línguas. É por isso também que gesticulo tanto, com minhas mãos enormes, tentanto me fazer entender. E é difícl entender, se você chegou agora, que meus gestos são grandes e minhas expressões exageradas exatamente porque sempre me faltam as palavras, mesmo que isso pareça paradoxal, já que eu falo tanto.
Mas você não estava aqui e não tem a menor ideia. E eu tenho toda a preguiça do mundo.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O mundo é bão, Sebastião!

Sou muito, muito pollyanna. E não faço o menor segredo disso. Acho, sim, que as coisas sempre acontecem pro bem, e tenho tido provas disso em acontecimentos sérios e em pequenas coisas do cotidiano. O acaso tem sido sempre bacana comigo. Sorte ou lei do retorno, nem sei. Mas pouco importa.
Tenho preguiça de gente negativa, da hiena Hardy, de quem só vê o mal em tudo. E por isso mesmo faço questão de contar quando alguma coisa bacana e inesperada acontece comigo. Chega de desgraça - tem que divulgar as coisas boas, as ações bacanas, as pessoas do bem. Agenda positiva, mia gente!
De ontem pra hoje, tive mais uma prova de que "o mundo é bão, Sebastião".
Sai de Teresina pra Picos, de ônibus, com duas sacolas de mão, uma sacola térmica, minha bolsa e uma mochila nas costas (com meu notebook). Sim, é coisa demais, eu sei. Mas o que seriam dois volumes viraram cinco depois de passar pela casa da mamãe. Enfim, embarquei em Teresina com tudo isso e desci em Picos com tudo, MENOS a mochila com meu notebook e toda a minha vida acadêmica.
Fui pra casa, tomei banho, jantei, papeei. O ônibus seguiu pra Recife. Já quase indo dormir, dei pela falta da mochila. "Jisus Maria José, meus escritos! Minhas aulas! Meus artigos! Minhas fotos! Minha vida!"
Fui à rodoviária, falei com o funcionário da empresa, peguei o telefone do gerente, etc e tal. Liga de lá, liga de cá. Gerente, guichê em Araripina, guichê em Recife, motorista, garagem em Recife... E o que todo mundo dizia era: "É claro que você não vai achar a tua mochila. Se ao menos tivesse ficado no bagageiro... Mas na cadeira?"
E haja fazer promessa a São Longuinho. E haja responsar Santo Antonio (que dizem que pra marido né bom, não, mas pra achar coisa perdida...).
Hoje de manhã liguei umas três vezes pra garagem em Recife, e nada do ônibus chegar. Já quase desistindo, ligo de novo pro gerente da Progresso em Picos. Ele tinha localizado a mochila, o motorista já tinha guardado e ela já estava a caminho de Picos. Agora há pouco peguei a bichinha de volta no guichê da empresa.
Muita sorte? Talvez. Ou talvez a resolução tenha sido essa porque eu teria feito exatamente a mesma coisa que esse gerente gente boa fez. Um pouquinho de empenho dele e minha vida foi salva.
O mundo é bão, Sebastião!!!

sábado, 12 de outubro de 2013

Numa noite qualquer

Ela era inábil com as palavras faladas. Não sabia, não conseguia, se atropelava, atropelava os outros, falava em um milhão de rotações por segundo, abria um zilhão de links e no final não dizia nada. Ela não sabia falar, embora (ou talvez porque) falasse tanto. E certamente por isso escrevia. E, sim, escrevendo sempre conseguiu se entender com outros seres humanos. Até o dia em que travou numa frase dele que piscava na janela do bate-papo. Frase ou intimação? Nem sabia. Apagou. Pra nunca mais ter que ler. Antes, deu pulos de alegria, administrou uma fisgada no estômago e quis ligar pro melhor amigo na Terra. Respirou 457 vezes, não ligou pra ninguém, não respondeu nada e emudeceu. Desligou o computador e o coração. E foi sambar. Porque o que não se resolver com samba, nem reza braba resolve. Convenientemente esqueceu o celular em casa também. Não estava triste, nem com medo, nem sei-lá-o-que-mais poderia estar. Ela simplesmente não estava. Aliás, ela simplesmente não está. E talvez ela simplesmente nunca esteve, embora quisesse tanto estar. As coisas são exatamente o que elas são, independente da nossa necessidade de acreditar que estamos no controle. E ela ultimamente tem optado por não ter controle de mais nada, nem mesmo de seus passos que tentam sambar sem saber. Mas tem ainda uma pontinha dela que desenha porquês nos muros dos sonhos, e que acorda assustada pensando que poderia ser mais simples. Mas que volta a dormir sem resposta e que, no final das contas, entendeu que a incerteza é bem mais rica que qualquer resposta.

sábado, 24 de agosto de 2013

O renascimento do parto

Ontem, finalmente, assisti ao documentário “O renascimento do parto”. A primeira cena já foi de revirar minhas tripas. Ah, não. Não era nada demais. Eram só imagens de uma cesárea, iguais as que eu tenho em casa, em fita VHS. Era a crueza de uma cirurgia de extrair feto, numa linha de montagem hospitalar. Era só uma cesárea, como tantas que acontecem diariamente no nosso brasilzão campeão mundial de cesáreas. Era só uma mãe relatando a dor que foi pra ela abrir mão do parto que queria, como tantas outras nesse brasilzão.

Mas o filme não mostra só isso: mostra, principalmente, como o parto foi transformado em um evento médico/hospitalar no Brasil. E como é possível também reverter isso. Eu sei, eu sei: essa minha conversa de “parto domiciliar”, de “protagonismo feminino”, de “nascer com amor” parece conversa de “hippies que abraçam árvores”. E pode até ser também. Mas vai lá e assiste o documentário que você vai entender.

Vai lá e ouve obstetras, pediatras, obstetrizes, enfermeiras obstetras, com suas vozes legitimadas pela ciência, dizendo que tá tudo errado. Vai lá e ouve também as vozes de mulheres que, como eu, não sabiam que era preciso brigar pelo direito a um parto como queriam. Vai lá e entende que a briga não é CONTRA a cesárea – sim, essa cirurgia pode, sim, salvar a vida de mulheres e crianças – mas a favor do direito de parir. E, principalmente, do direito de parir como quiser. Do direito da mulher decidir sobre o próprio corpo e o próprio parto. Do direito de ser informada de verdade e não apenas enganada e amedrontada com informações do tipo “rebimboca da parafuseta” que mecânicos de ponta de esquina gostam tanto de usar.

Vai lá também pra ver a história de mulheres, de casais, de famílias, que desafiaram o sistema e conseguiram fazer do parto um momento de amor. Vai lá e chora pelos partos que você não teve. Vai lá e cutuca a ferida, menina. Vai lá e vê como teu filho foi maltratado ao nascer em um hospital. Vai lá e pensa porque mesmo ninguém jamais coloca os procedimentos médicos em xeque. Vai lá e assiste as cenas de mulheres parindo amparadas pelos companheiros, em banquetas, em banheiras, onde ELAS se sentiram mais confortáveis, e não onde o médico disse que tinha que ser, e não em uma maca fria, com os pés presos em estribos. Vai lá e pensa que pode ser diferente. Vai lá e pensa fora da caixinha.

Eu fui lá. Eu vi e ouvi tudo aquilo. E lembrei, mais uma vez, que eu não briguei pelos meus partos. Eu, Clarissa, leonina, guerreira, brigona desde sempre, determinada e valente, brochei diante desse sistema. E não pari. Eu vi a mim mesma e a algumas amigas ali. Eu, Clarissa, doutoranda, super informada, classe média, detentora de um bom plano de saúde, me vi ali, como mais uma mulher impotente diante de um sistema que nos trata como incapazes de decidir. Eu, Clarissa, fui, vi, ouvi, chorei litros. E pensei que é preciso mudar a forma de entender gestação e parto, antes sequer de se pensar em mudar todo um sistema. E que, se não há um único vilão nessa história, é preciso que cada um se ocupe do vilão que melhor lhe cabe.